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sábado, 26 de março de 2011

O Milagre do Pão de Queijo

Mais de uma hora no aeroporto. Passou pelo portão de embarque rumo à revista obrigatória. Retirou os óculos. Depositou-os na bandeja com o celular, a carteira, cinco moedas e o velho relógio de prata, companheiro de todas as horas. Checou os bolsos. Sentiu o gelo do metal frio enrijar os dedos. Apalpava a prótese tentando lembrar a última vez que a tirara da boca. Meia hora atrás, se muito. Acontecera no bar. Pedira um pão de queijo para acompanhar o expresso. Sendo nova a peça, teve receio de danificá-la. Longe do alcance dos olhares curiosos, puxou-a de supetão, escondendo-a no bolso, enrolada ao guardanapo. A lembrança foi cortada pelo tom áspero. "Sr. é a sua vez!" Acelerou o passo, ultrapassando a faixa amarela. O alarme soou alto. Olhares indiscretos censuravam calados o senhor de barba branca que atrasava a fila. "Por favor, retorne à faixa e passe outra vez pelo detector de metais." Mesmo percurso; mesmo desfecho. Apenas o alarme pareceu-lhe outro, de maior duração. Retornou ao ponto de partida. Menos por cortesia e mais por querer livrar-se do problema, a segurança ofereceu a opção de passar os sapatos pelo Raio X ou seguir direto para a inspeção. Exasperou-se. "Minha senhora, desse jeito vou perder o vôo. Já esvaziei os bolsos. Depositei todos os meus pertences na bandeja. O que mais quer? Que tire a roupa?" A funcionária olhava-o com desconfiança. Sabia de casos de sequestros, tráfico de entorpecentes e ações terroristas praticados por cidadãos comuns da terceira idade. "Sr. não vou deixá-lo embarcar enquanto não descobrir o que está acontecendo". Tirou os sapatos. Atravessou o corredor como um condenado, implorando a Deus pelo milagre que não veio. O som agudo foi suficiente para reforçar o antigo ateísmo. Três novos seguranças posicionaram-se ao lado de sua algoz. "O Sr. tem certeza que esvaziou mesmo os bolsos?" Ao que respondeu bastante irritado. "É sempre assim. Preferem duvidar da gente a imaginar qualquer defeito no equipamento". O clima frio fora do aeroporto pouco amenizava o clima quente de dentro. "Infelizmente temos de revistá-lo. Queira dirigir-se à cabine, por favor." Exausto, aproximou-se do balcão. Sussurrou. "Eu sei o que fez soar o alarme. Foi minha prótese!" A equipe deu um passo à frente. Pediu que repetisse o que dissera. O zum zum zum das reclamações era ensurdecedor. "Foi a minha prótese!", repetiu mais alto. "Como?", retrucaram os quatro, em uníssono. Explodiu. "Minha dentadura! Den-ta-du-ra!!!" Para manter o comando, a segurança conteve o riso. "Sr., peço-lhe que coloque a dentadura na bandeja para que possamos liberá-lo." A crueza da ordem tirou-lhe o chão. Toda sua vergonha seria depositada ali. À frente de todos. Respirou fundo. Manteve a dignidade. "Minha senhora, em 45 anos de casado, nunca mostrei esta prótese sequer para minha esposa! Não será a senhora a primeira mulher que irá vê-la!" Saiu da fila de queixo erguido e sorriso seguro no bolso. Chegou em casa. A viagem era por conta das férias. Sua família o esperava na praia. Refletiu sobre a dificuldade que teria para comprar nova passagem. Girou a maçaneta e entrou. Largou a maleta no chão. No ar, cheiro de algo ainda queimando. Vinha da área de serviço. Percebeu pela nuvem de fumaça. Deixara o ferro ligado à tomada, em cima da tábua de passar roupa. Por pouco teria provocado um incêndio. Sabe-se lá de qual proporção. Por pouco estaria sentado em pleno vôo, sem saber que perdia a casa e, com ela, sua aposentadoria. Por pouco Deus o teria convertido cristão. Mas a personalidade desconfiada o fez acreditar em outro milagre. Fora salvo por um simples pão de queijo.
E por pouco, muito pouco...

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