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quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Cada vez mais míope...

Você está cada vez mais míope, hein Tina? A aspereza da frase foi interrompida pelo aviso da secretária de que eu seria a próxima, o que provocou alívio diante da conversa desinteressante, já na iminência de descambar para a falta de respeito. Você está cada vez mais míope, hein Tina? Repetiu mais alto, certificando-se de que a escutara. Esse cara é um bandido, não cumpre a lei. Todo mundo sabe. Só você não enxerga isso! E pensar que o talzinho ganha tudo que é eleição... Êta povo safado esse nosso !!! Despejou-me irada a amiga dos tempos da faculdade. “Caras” no colo a folhear displicente. O velho olhar de esguelha à procura de aprovação, ao que encontrou apenas a abstração tranqüila dos que também aguardavam a chamada do oftalmologista. Uns assistiam ao noticiário da tv. Outros checavam mensagens no celular. Aproveitei o intervalo e mudei de assunto. E as crianças? Tudo bem em casa? Levantou-se com sinal de "volto já" para buscar água, estando meio minuto depois de volta com três copos de plástico unidos, conforme retirara do dispensador. Indaguei surpresa a quantidade exagerada de copos. A pergunta ficou no ar, embora desprovida de outros pecadilhos afora a curiosidade humana. Minha nossa! Você não acredita no sufoco que estou passando por causa da Dolores... Lembra dela? Pois é. Arrumou coisa melhor. Pediu as contas e foi embora. Sem nem agradecer, a ingrata. Resultado: todo dia levo os meninos para a casa de mamãe e só busco à noite, depois do trabalho. Um horror! Tentei demonstrar consternação, mas não tive chance frente à fala atropelada. O pior é que a criatura entrou na Justiça para cobrar INSS, FGTS, férias, etc. Justo ela que sempre teve de tudo lá em casa! Podia comer o que quisesse porque a gente não fazia distinção, sabe? O desdém fez com que libertasse ainda mais o verbo. Ia embora sexta à noite e não trabalhava aos sábados. Ganhava roupas e sapatos que eu não usava mais. E até comer na mesa da sala com a gente, vez ou outra, eu deixava! Agora, a danada me lasca um processo em cima. Que grande injustiça! Mas você assinava carteira, né? Perguntei na boa fé. É claro que não! Além de cega você é surda, Tina??? Não ouviu o que eu disse há pouco? A gente tratava ela muito bem. Casa, comida, roupa lavada... O que mais ela queria? Só falta agora você dizer que paga tudo certinho para a Cida, que não burla o fisco ou que não tem cd pirata em casa. Há! Há! Há! Pago. Não burlo. Não tenho. Pensei retrucar, mas preferir ser didática. A lei diz que... Sra.! O doutor a aguarda no consultório. Preciso ir, expliquei, sentindo-me livre como nunca. Entrei na sala, expus o caso, fui clinicamente examinada enquanto, intuitivamente, divagava sobre os sintomas daquela impostura, iludindo-me com a possibilidade de tratar-se de doença nacional rara, provocada pelo meio ambiente hostil. De súbito, ouvi uma voz grave anunciar meu diagnóstico: Você está cada vez mais míope, hein Tina?