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terça-feira, 15 de março de 2011

Retrato de Amor

Nada a preocupava mais do que deixar a pequena Rosa aos cuidados de seu velho pai. “Carrancudo como é irá fazê-la chorar”, pensou aflita, enquanto pegava a bolsa em cima do aparador e as receitas médicas espalhadas na superfície do mogno escuro. Quatro anos comemorados dia anterior e Rosinha ainda se via às voltas com bexigas coloridas sobreviventes, perseguindo-as por toda a casa. As mais ousadas perdiam o ar da vida durante a fuga, restando secas e inertes até a chegada do resgate adulto. Uma a uma, eram cuidadosamente descartadas. Sem compaixão. A cada estouro, seguia-se a risada alegre de menina travessa, desprovida de culpa ou remorso. A febre deixara suas bochechas ainda mais rosadas. Tanto que pareciam pintadas por um artista circense, compelido a colorir a menina-anjo cuja falta de asas não a impedia de voar. Pelo contrário. Pulava sofás, ultrapassava cadeiras e escalava mesas com a destreza de exímia alpinista. As feições perfeitas lembravam uma boneca de louça antiga. Dessas que, só de olhar, tem-se medo de quebrar. Mesmo debilitada, a menina corria livre pela sala, jogando para o alto as revistas semanais que alguém perdera tempo organizando na estante. “Querida, não faça isso. Comporte-se. Mamãe vai à farmácia comprar os remedinhos da princesa e volta já.” Partiu apressada, sem tempo de perceber o beiço tremular e a lágrima indecisa da filha. Mais precisamente, era uma mini-lágrima, que se recusava a correr rosto abaixo. Sentado na velha poltrona xadrez, o avô lia indiferente à presença da pequena. Tinha aversão a crianças. Rejeitara a vida inteira a idéia de ser pai. Se aconteceu foi por pura falta de sorte ou descuido, comentara várias vezes com os amigos mais próximos. “Eu avisei que não queria filhos”, culpava a esposa, enquanto estremecia com a capacidade singular de ferir quem o amava. Há muito deixara de mentir para si mesmo. Abrira mão da prerrogativa antes do prazo. Ficara viúvo e tivera a infelicidade de ver sua única filha engravidar após brevíssimo romance com um poeta desempregado. Na verdade, um desempregado que se dizia poeta. Tal era a mediocridade do desocupado que, tão logo soube da notícia, deixou a namorada com a mesma velocidade com que a conquistou. Baixou os olhos e somente então percebeu duas grandes "bolas de gude" encarando-o. Sim. Rosinha era mesmo uma boneca. Desviou a atenção para o outro lado. Percebeu a aproximação lenta, porém obstinada. Voltara a ler enquanto a observava de soslaio. Ela contornara a poltrona, disfarçando os movimentos, até alcançar a escrivaninha do avô. O suspense chegou ao fim quando Rosinha, em um pulo audaz, puxou a gaveta da mesa com a determinação de quem imaginava haver ali um tesouro escondido. O objeto desprendeu-se do móvel e foi ao chão, levando com ele papéis, canetas, talão de cheque, recibos de cartão de crédito e até a cópia do imposto de renda do ano passado.“De novo a mesma cena. Droga!”, exclamou zangado, chamando a atenção da flor que o desafiara. Preparou-se para a reprimenda quando o passado descortinou-se à sua frente, trazendo a filha na mesma idade, abrindo a mesma gaveta e espalhando, escritório afora, os mesmos papéis de nenhuma importância. Naquela época a reação fora instantânea. Puxou-a pelos cabelos e fez com que, aos soluços, guardasse tudo de volta, convicto de que o objetivo maior de dar-lhe boa educação respaldaria qualquer reação desproporcional que tivesse adotado. Não era culpa sua. Crescera fazendo parte de um ambiente político contaminado por interesses pessoais que, em nome de um pseudo “bem maior” sobrepujavam interesses verdadeiramente coletivos. Retornou ao ponto em que se achava. Entre o déjà vu e o impulso contido veio a pergunta inocente: “Vô, eu posso te desenhar?” Tamanho atrevimento pegou-o desprevenido. A descoberta de que ele existia e, mais ainda, despertava o interesse da neta dirimiu suas defesas. Fez sinal de assentimento com a cabeça e ficou ali, encostado à parede. À espera. Rosinha levou menos de quinze minutos para terminar o retrato e, em meio à desordem, entregou orgulhosa a obra-prima, acompanhada de um beijo sorridente. Ali estava ele. Via-se como no espelho. Sentado na poltrona xadrez. Os óculos levemente enviesados, segurando com uma das mãos um livro aberto de capa azul e letras douradas. A outra mão, caída displicente ao longo do corpo, quase não se deixava notar. O que mais o intrigou foi o feitio da boca, em formato de “u” ao contrário, o qual revelava o quanto a neta lhe dedicava atenção. Ao passo que, para ele, começara a conhecê-la naquele instante. E o fato de ter passado os últimos quatro anos sem sentir o que agora sentia fez com que quisesse compensá-la de tudo, entregando-se àquela sensação que só experimentara na infância e que viera a abandonar logo depois. Ali, agachado perto da pequena Rosa, sentiu-se novamente Desabrochar...

Um comentário:

  1. Finalmente um texto bonito e relacionado ao propósito do blog. Mas o acento de ideia caiu por terra.kkkkkkkkkkkkkk Adorei o texto, lembrei de Pêeeeeeeeeeeet.

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